A experiência de Deus na Leitura Orante


LO inicio1“O Senhor Deus me deu língua de discípulo para que eu saiba ao enfraquecido, ele faz surgir uma palavra. Manhã após manhã ele me desperta o ouvido, para que eu escute, como os discípulos; O Senhor Deus abriu-me o ouvido” (Is 50,4-5).

Setembro, o mês da Bíblia na Igreja do Brasil, é marcado, pela centralidade da Palavra de Deus. No presente artigo, propomos como reflexão uma das formas mais antigas de espiritualidade bíblica: a leitura orante, ou a “lectio divina”.

Sinteticamente falando, a Leitura Orante consiste num momento em que se reflete e se reza um texto bíblico. A Leitura Orante da Bíblia é como um colírio: limpa os olhos embaçados, para que se comece a enxergar com os olhos de Deus. Não é um momento de estudo, nem um tempo para preparar um trabalho pastoral: é um momento de leitura da Palavra de Deus e de escuta do que ela nos diz pessoalmente, para melhor viver o Evangelho de Jesus.

Jesus comparou a Palavra de Deus a uma lâmpada. A lâmpada não é para ser olhada: devemos é olhar para o que a lâmpada está iluminando (cf. Mt 5,15). Assim também a Bíblia: foi feita para iluminar o chão de nossas vidas. Com a sua luz, saberemos o que deve ser “consertado”, para sermos novamente conforme o sonho de Deus. Misturando Bíblia e Vida, no enfoque de Carlos Mesters, os pobres viram refletida na Bíblia a vida deles e convenceram-se de que, como na época do povo da Bíblia, em que Deus ouviu o clamor dos pobres e caminhou lado a lado com eles (cf. Êxodo 3:7s), também hoje, por meio das Escrituras Sagradas, da vida e da comunidade, Deus continua falando.

Todos os Batizados, convidados a alimentarem-se pela Leitura Orante da Bíblia, mostram que amam Jesus, fazendo o que Ele fez: empenham-se pela igualdade, justiça, fraternidade, a fim de que toda a riqueza do mundo seja partilhada e todos tenham uma vida digna.

Nos inícios do século V, Cassiano, referindo-se à importância da Leitura Orante já dizia: “Esforça-te em aplicar-te assiduamente, aliás, constantemente, à lectio divina, e insiste nisto até que esta meditação contínua tenha impregnado a tua alma e, de certa forma, a tenha plasmado à sua imagem” (Conferências, XIV, 10).

O Concílio Vaticano II igualmente exorta que “só pela luz da fé e meditação da Palavra de Deus, pode alguém, sempre e por toda a parte, reconhecer Deus, em quem vivemos e nos movemos e somos (At 17,28), procurar em todo o acontecimento a Sua vontade, ver Cristo em todos os homens”. (Vat. II, Apostolicam Actuositatem, 4)

Após o Concílio, a prática da Leitura Orante, motivado por Fr. Carlos Mesters, Carmelita. um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e grande incentivador da leitura popular da Bíblia através dos Círculos Bíblicos e das Comunidades Eclesiais de Base, foi aumentando graças à prática de novas comunidades religiosas, aos movimentos eclesiais, especialmente as CEBs e na pastoral de algumas dioceses.

Hoje, pela simplicidade de sua metodologia, este método já se incorporou de tal modo na vida pessoal e comunitária de muitos cristãos que podemos deduzir que a leitura e a meditação da Palavra de Deus se tornam fundamentais para quem está em busca do querer de Deus em suas vidas. É a Palavra que forma e dá vida ao Cristo em nós, que aos poucos irá revelar o plano e o projeto de Deus na realidade da pessoa, na realidade da comunidade e na realidade da sociedade, numa hermenêutica interativa.

A coisa mais importante para quem quer fazer a experiência deste método, será encontrar um tempo durante o dia, para dedicar-se à leitura e à meditação da Palavra de Deus. O lugar pode ser a igreja ou até mesmo um quarto da casa ou um lugar sossegado, como nos sugere o próprio Jesus quando nos diz: “… quando orares, entra no teu quarto e, fechando a tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo…”. (Mt 6,6)

Quem desconhece esta forma de reflexão bíblica pode estar se perguntando: Como fazer a Leitura Orante? Algumas dicas poderão ajudar-nos na vivência de uma autêntica espiritualidade bíblica.

I – Espiritualidade da Leitura Orante:

A leitura indaga, enquanto a meditação encontra; a oração pede, ao passo que a contemplação saboreia. A leitura é um exame cuidadoso das Sagradas Escrituras, que impulsiona, mediante uma moção do Espírito Santo. A meditação é uma atividade mental que se dedica a escavar na verdade mais escondida, sob a guia da própria razão.

Toda oração deve ser preparada com amor. A oração é a conversa, o diálogo com a pessoa mais importante. Devemos, numa atitude de amor, preparar a terra para receber a semente. Em oração, temos de preparar o ambiente exterior: sala, quarto, altar, canto, etc e também preparar o coração: sentimentos, silêncio interior, transparência, etc .

II –  Condições para o êxito da Leitura Orante

1- Escuta silenciosa… Criar um clima de silêncio,externo e interno. O momento da Leitura orante da Bíblia não é um momento de estudo nem um tempo para realizar um trabalho pastoral, ou adquirir mais conhecimento. É, antes de tudo, um momento de ler a Palavra de Deus e escutar o que esta palavra tem a nos dizer para melhor viver o Evangelho de Jesus Cristo. Nesse momento é necessário ter a atitude que o velho Eli recomendou ao menino Samuel: “… Fala, Senhor, que teu servo escuta …” (1Sm 3,9). Esta também foi a atitude obediente de Maria: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

2- Criar um ambiente de recolhimento, que se torne o espaço sagrado. É o momento do silêncio. Lugar de recolhimento. Ler a Bíblia é como visitar um amigo. Os dois exigem o máximo de aten­ção, respeito, amizade, entrega e escuta atenta. Uma boa posição do corpo favorece o recolhimento da mente.

3- Preparar o ambiente interior. A oração é diálogo interior com Deus. O Mestre Jesus nos ensinou a rezar com o coração. Ele ia para a montanha e passava horas em diálogo com o Pai. Ele carregava em seu coração as Escrituras e meditava sobre elas com muito amor .Quando silencio o meu coração torno-me transparente diante de Deus, apresento-me como sou verdadeiramente, pois a “mentira é inimiga do silêncio!” Sendo quem sou, as Escrituras encontram no meu silêncio uma verdadeira caixa de ressonância onde ecoará o amor de Deus. O silêncio do Coração é como a caixa do violão, onde o dedilhar das Escrituras faz soar a bela melodia do Amor de Deus.

4- Invocar o Espírito: É o momento em que se deve estar aberto à docilidade do Espírito Santo. Escutar Deus não depende da pessoa, mas Dele. É um momento de gratuidade por parte do Pai. Para isso é preciso um preparo vigilante na oração, no silêncio para descobrir o sentido que a Palavra de Deus tem para cada um, hoje. Em comunhão com a Igreja, pedir ao espírito de Deus que abra nosso ser para nos inserir na compreensão do mistério, da presença constante de Deus em nossa vida.

5- Comunhão com a Igreja. A escritura é um texto vivo que transmite a experiência de uma comunidade viva. Ao abrir a Bíblia deve-se estar consciente que esse livro não é propriedade pessoal mas da comunidade. A Leitura Orante é o barco que nos conduz pelas curvas do rio até o mar. É luz que ilumina as noites escuras da vida. Mesmo que se esteja só realizando este momento de oração, estarão junto todos os que já fizeram esta experiência amorosa de Deus . O texto bíblico deve ser lido em comunhão com a comunidade, ainda que individualmente.

LO preview 16- Ter uma correta atitude interpretativa diante da Bíblia. Acreditar que o texto bíblico é inspirado, assim como o leitor também o é. A leitura de um texto bíblico depende da interação entre a experiência da pessoa que lê com o texto que está sendo lido.

7- Procurar, por todos os meios, que a interpretação seja fiel. A Palavra deve tornar-se vida. É preciso deixar se questionar pela Palavra e conformar nossa vida às exigências que ela nos apresenta.

8- Abertura de coração para chegar à contemplação. Deus nos chama para “falar ao coração”. É preciso pedir um coração que escuta, aberto e dócil, obediente e leal. Simplicidade. Enxergar, saborear, agir. Contemplar é ver com os olhos de Deus! É perceber a vida com o jeito de Jesus. Tudo se renova numa profunda atitude de amor. É ter nos olhos algo da sabedoria que leva à salvação; excluir de si tudo o que vem do poder; saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas as coisas; o amor de Deus se revela no amor ao próximo; dizer sempre: “faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38).

9- Descobrir na Sagrada Escritura o espelho do que vivemos hoje. Ter presente que o texto que se leu não é só uma janela por onde se olha para saber o que aconteceu no passado; é também um espelho, para ver o que acontece com a gente, hoje.

10- Interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Na Leitura Orante da Bíblia, o objetivo último não é interpretar a Bíblia, mas interpretar a vida. Celebrar a palavra viva que Deus fala hoje na vida de cada um, na vida do povo, na realidade do mundo em que se vive.

III-   Leitura Orante passo a passo

1-  INICIANDO:

Antes de iniciar a Leitura Orante já devemos estar com o texto bíblico escolhido. Fazer um momento de silêncio pensando que vou encontrar o Senhor. Peço a Deus perdão pelas minhas ofensas porque a pureza do coração e a humildade são características fundamentais para entrar na leitura do texto bíblico.

Num segundo momento, coloco-me na presença de Deus, rezo um Pai Nosso tentando olhar-me como Deus me olha. No fim, peço ao Pai o dom do Espírito Santo porque a Bíblia é um livro inspirado por Deus e, portanto, deve ser lido e interpretado com a ajuda do Espírito Santo.

2-  PRIMEIRO PASSO: A leitura do texto

A leitura consiste em alimentar-se da Palavra. Ela deve ser feita com atenção, com serenidade, sem subestimar o que pode parecer secundário, interpretando corretamente o sentido histórico. É importante ler e reler o texto, tentando compreender o que se acabou de ler, procurando questionar-se sobre o sentido das palavras e prestando atenção sobre o que elas querem nos dizer.

Memorizado o texto, devemos reler calmamente, anotando, sublinhando os aspectos principais do texto que é a Palavra de Deus. Prestar atenção para a voz de Deus.

LO 6previewPerceber as personagens do texto, o papel de cada uma. Notar o ambiente, a época, a linguagem, as ações e reações, a poesia etc.

A grande pergunta que se deve fazer neste momento é: “O que o texto diz?”.

É importante lembrar que o texto bíblico é a Palavra de Deus na história do povo. A Bíblia nasceu no coração de Deus e no coração do povo. Por isso precisamos respeitar o texto. Preciso ter consciência de minha pobreza e silenciar o meu coração para que a Bíblia fale por si mesma. Devo deixar o texto falar e na humildade e no silêncio lutar para não levar o texto a dizer aquilo que eu quero ouvir.

3-  SEGUNDO PASSO – A meditação: dialogar com o Texto / dialogar com Deus

Através da meditação se examina a Palavra, se guarda no coração como fez Maria, que “conservava cuidadosamente todos os acontecimentos e os meditava no seu coração” (Lc 2,19).

O objetivo deste passo é chegar ao conhecimento da verdade que está contida na Palavra. O termo usado por muitos autores aqui é “mastigar e ruminar” o texto bíblico para aprofundar e penetrar nas palavras e mensagens. Atrás de cada palavra está o Senhor que me fala.

Aqui é importante recordar outros passos bíblicos paralelos, a compreender e confrontar o texto com a minha vida ou com experiências do passado, estimular o desejo de saber o que Deus quer de mim…

Na meditação grande pergunta é: “O que o texto me diz ou o que Deus fala para mim?”. Devemos deixar que o sentido do texto penetre em nossa vida para colocarmos em prática a vontade de Deus. Devemos nos esforçar para anotar os apelos de Deus para, depois, colocá-los em prática.

Meditar é dialogar. Deus fala no silêncio e no silêncio escutamos a voz de Deus. Perguntemo-nos: Qual versículo me chamou mais a atenção? Quais apelos Deus me faz? O que devo fazer? O que preciso mudar em minha vida? É isso, meditação de verdade é só pela verdade. É na meditação que muitas pessoas desanimam, pois elas têm medo de mudar de vida.

ld-104-  TERCEIRO PASSO – A oração: não falar de Deus, mas falar com Deus

Agora é hora de perguntar: “O que esta Palavra me faz dizer a Deus”? Sim, agora devemos falar. Nossa prece nasce da Palavra meditada. Chegou a hora de respondermos a Deus. Nossa Leitura Orante se transforma numa deliciosa conversa com Deus. Louvarei a Deus por seu infinito amor. A oração que agrada ao Pai é a de Jesus.

Vou ofertar na oração o que a leitura e a meditação do texto me fizeram conhecer e desejar. Neste momento falo com o Senhor de amigo para amigo sobre aquilo que o Espírito me inspirou.

A oração, portanto, se torna uma entre as possíveis respostas ao apelo do Senhor, é uma reação que segue ao toque que Deus operou no meu coração através da sua Palavra.

E assim a Palavra de Deus se torna uma Luz para o meu caminho, é algo que orienta os meus passos, o meu viver. Conforme estou vivendo a minha vida, posso pedir neste diálogo com Deus que Ele me oriente, posso pedir-lhe perdão pelas minhas ofensas, louvá-lo e agradecê-lo.

Se estiver pensando no meu futuro, posso aproveitar deste momento para pedir-lhe Luz necessária para fazer a sua vontade e encontrar o caminho que Ele desde sempre traçou para mim.

LO 4preview5-  QUARTO PASSO – Contemplação: enxergar com o olhar de Cristo

Na contemplação o silêncio atinge sua capacidade máxima. Nela me “imagino” com Deus, sinto que sua Palavra agora está dentro de mim, me renovando, transformando por completo. Não se diz nenhuma palavra. É experiência, é sentimento! Apenas quero estar com Deus, ser com Ele. Viver nEle. Sinto que Deus me convida para algo. Aceito o convite: vou com Ele! Minha comunidade precisa de mim: um “Eu” renovado pela experiência da contemplação.

6-  QUINTO PASSO – Compromisso: caminhar com Cristo

Comprometer-se expressa nossa adesão ao projeto do Reino.Vou tomar um versículo, uma frase do texto bíblico que meditei e guardar em minha memória.

A Leitura Orante da Bíblia só servirá se nos ajudar a mudar de vida. Quero lembra uma coisa: Deus nos fala na Bíblia e na vida dos pobres!

7- CONCLUINDO – Despedida: encerrar a oração e continuar com Deus

É preciso encerrar a oração. A oração iluminará nossa vida e “é preciso saber viver”!

Devemos dar o nosso abraço em Deus. Nosso beijo será como o de Madalena: o ósculo do Rabbuni Ressuscitado. É preciso se despedir… Não falaremos “adeus”, mas um “até logo”, pois já temos um outro encontro marcado.

Devo alimentar minha necessidade de Deus. A cada encontro, uma nova experiência. Mesmo quando não quero o encontro, devo vencer minhas resistências internas e reencontrar Deus em sua Palavra. A cada dia serei transformado num/a discípulo/a novo/a. Podemos rezar um Pai-Nosso, ou uma outra oração. Simbolicamente devemos pensar “Apaga-se a vela, mas não se apaga o amor”.

Após a oração conclusiva, deve-se avaliar a oração. Podemos nos servir das seguintes questões:O que mais gostei? Quais foram as dificuldades? O que devo melhorar?

LO 1previewIV-  A Leitura Orante evangeliza

Olhando a vida com o olhar de Deus, evangelizamos. Esse novo olhar é a conversão. É essa conversão de que tanto precisamos. Que o nosso olhar seja o olhar de Jesus: aquele mesmo olhar que defendeu a adúltera, que expulsou o mal, que semeou o amor, que curou os doentes, que escutou o povo simples, que se encantou com as crianças, que tocou tantos corações…

A partir desta reflexão podemos concluir que a evangelização passa pela Leitura Orande da Palavra. Às vezes não anunciamos a Lectio Divina porque simplesmente não fazemos esta experiência.

Sintamo-nos chamados a fazer a experiência pessoal deste método, para depois fazermos dele a experiência comunitária em nossas comunidades religiosas e paroquias. “Uma escuta séria e obediente da Palavra, preparada com zelo, mas também com criatividade, pode ser capaz de envolver muitos fiéis e tornar-se fonte de discernimento, capaz de renovar o caminho da fé e a própria vida cotidiana”, afirma o padre carmelita Bruno Secondin.

Como discípulos e discípulas missionários, consideramos uma grande graça trilhar este caminho com as pessoas e com a Palavra: aprendemos a conhecer e amar a Palavra com seriedade, a transmitir sua chama de verdade e doçura.

A frequente exortação do Papa à Lectio Divina nos faz pensar que estamos no caminho certo. Nós semeamos. O Senhor fará germinar e crescer, de acordo com Sua vontade. Somos seus servos e servas, e temos um grande prazer em sê-lo. “Tenhamos em nós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”! (Fl 2,5)

MARAIrmã Mara Claudete Patan

é franciscana alcantarina, Teóloga e

Pedagoga


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